quinta-feira, 29 de outubro de 2015

A Regra do Jogo

Quase não vejo novelas hoje em dia. Na adolescência, literalmente inundei meu cérebro com suas tramas. São mentiras, o bem e o mal em sua forma mais evidente, mortes, traições e intrigas. Os ricos são esmagadores milionários e tomam um café da manhã de hotel cinco estrelas, servido pela criada. Mas, às vezes, e muitas delas, perdem a fome diante do banquete, tomam um café preto e saem correndo para resolver falcatruas intermináveis nas empresas das quais nós, meros expectadores, só conhecemos a sala da diretoria. Digo "como meros espectadores" e já me arrependo: não assistimos novela no Brasil. Nós a seguimos. Ou por outra, ela nos segue. O último sucesso realmente repugnante foi conseguido pela bem escrita Av. Brasil - nome de uma das vias mais interessantes do Rio de Janeiro. Para que serve segui-la senão para contaminar nosso raciocínio sobre a realidade de forma a sobrepor ares de romance a por vezes tão repetitiva realidade. Falei dos ricos de novela mas os menos favorecidos também são confeitados com uma aura que lembra os tempos da Idade Média. Quando ser carente de recursos materiais era, por assim dizer, uma deslavada bênção de Deus. Os ricos não veriam o reino dos céus e o filho de Deus nunca escondera uma certa preferência por eles em sua temporada na terra. Ou seja, nos afeiçoamos e até nos sentimos mais felizes nas casas decoradas com uma simplicidade ululante e moradores de caráter inabalável. Exceção feita aos que sofrem do pecado absolutamente perdoável da ambição. Mulheres e homens que não hesitam a usar sensualidade e a sagacidade para aplicar golpes nos mais abastados. Em uma espécie de Robin Hood eticamente duvidoso mas nem por isso menos admirado. E, assim, vamos nos enrolando nas tramas da novela. As histórias que inicialmente pareciam distantes e desconexas vão se transformando em uma via onde vários ramos de estrada se entrecruzam em uma logística bela e perigosa. De minha parte, fico reticente em me envolver mais do que devo. Vejo, quando posso, a entrada. que, mais das vezes, é uma obra de arte à parte. A música escolhida para combinar com as imagens beiram à perfeição. A entrada da novela representa e tipifica o sucesso da mesma. Com esta trilha sonora esperaremos o que nos reserva o capítulo de hoje e no mesmo dia presenciaremos o fechamento emocionante ou de pura decepção ou espanto com as mesmas imagens e outra música ao fundo. Não entendo porque o motivo de tal mudança. Gostava mais na minha época em que o capítulo tinha uma moldura simétrica. mas os produtores devem ter lá suas razões para esta alteração. Eis o que queria dizer: minha vida real ou onírica toma ares de novela. Peguei o título emprestado desta. Admirei a abertura com peças de xadrez e explosões como se a alguns cumpre obedecê-las e a outros, desafiá-las. Peço licença aos meus leitores para me aventurar em algo parecido com uma traminha ou um trauminha. Começaremos semana que e terminaremos sabe-Deus-quando. Espero não decepcioná-los com minha mente alimentada a filmes e novelas há mais de 30 anos.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Crente que faz análise

Que ironia. Minha mãe me presenteou com um "Diário da Mulher Vitoriosa". Nunca me senti menos vitoriosa. Meu marido e pai dos meus dois filhos tem uma amante. Minhas notas na faculdade estão péssimas e não há um dia sequer que eu não pense em desistir. Talvez não seja para mim. Tantas coisas que eu desejava não aconteceram. Tenho 36 anos, uma filha de 15 e um menino de 8. Pedi demissão do meu emprego. Não era o trabalho em si que me arrasava mas as duas horas e meia que ficava dentro de um ônibus. Fico pensando qual o sentido disso tudo. A vida está pesada e sem cor. Tudo é de uma repetição impressionante. Por isso não escrevi nada no meu diário. Seria uma sucessão de repetições. Acordar cedo. Colocar as crianças para escola. Fazer almoço, cuidar das roupas. Limpar a casa. Fazer o jantar. De noite, único momento em que temos toda a família reunida não poderia ficar mais só. Nem sequer conseguimos assistir televisão juntos. Meu filho joga, minha filha não saí do computador e meu marido do celular. Prefiro estar mesmo sozinha do que falsamente acompanhada. E sou invadida por uma imensa saudade. Não sou do tipo de pessoa que quer parecer ter menos idade do que tem. Da infância, lembro de algumas poucas coisas como meu lanche humilhante. ovo com beterraba. Comia escondida aquela comida rosa e nunca tinha dinheiro para entrar na fila da cantina. Sonhava entrar naquela fila e reclamar do salgado como as outras meninas. Na adolescência, pouco melhorou. Frequentava as reuniões da igreja e cantava. Lembro do meu casamento e sinto uma fisgada não sei se no peito ou na boca do estômago. Estava tudo preparado e foi cancelado. Ainda noiva fiz algumas coisas. Contei para minha prima, talvez ela tenha contado para minha mãe, chegou aos ouvidos do meu pai. Não tenho raiva dela. Ou melhor, tenho. Mas tenho mais raiva de mim. Todos estão dormindo agora. Gosto de ser a última a dormir e a primeira a acordar. Tenho a clara sensação que a casa precisa de mim para viver. Minha prima não casou e eu, já vou fazer 17 anos. Abro o diário. Em cada página um texto bíblico que me bloqueia os pensamentos. Acho que deveria me separar. Eu durmo no quarto com meu filho e ele no quarto da minha filha. Penso que já estamos separados mas vivendo na mesma casa. Só falamos um com outro o essencial. Já enfrentamos muita coisa juntos: desemprego, morte do pai dele, mudanças, decepções. Traições. Sei que também cometi meus erros. Ele não me deseja como mulher há muito tempo. Vivemos como irmãos. Penso em ter um cachorro. Talvez resolva esta solidão. Penso "solidão" e jé me sinto sufocada. Um pouco antes de sair do emprego comecei a ter isso: não aguentava ficar no ônibus. Faltava o ar. Pensava que iria morrer. Ou ficar maluca. Tomo remédios. Melhoro um tempo. Pioro de novo. Não consigo ver a saída. Estou assim há quase dois anos. Cansada. Infeliz. Preciso de uma vitória, penso olhando o diário fechado. Amanhã tudo começa cedo. A casa não respira sem mim. Me falta o ar. Tenho medo.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Saramago. Sonha Mago.

Trecho do livro: Memorial do Convento. "Dormiu cada qual como pôde, com seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas, acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não chega isso para sabermos que homem era e que água corria, a água que correi no sonho é água só do sonhador, não saberemos o que ela significa ao correr se não soubermos que sonhador é esse, e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado ao sonhador, perguntando, Um dia terão lástima de nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e tão mal..." - Página 121

terça-feira, 13 de outubro de 2015

Já tomou seu remedinho hoje?

Um dos problemas de enfrentar qualquer desordem psiquiátrica ou precisar de auxílio medicamentoso é a falta de compreensão de amigos e familiares. Por vezes, isso é mais dolorido do que a patologia propriamente dita. As medicações evoluíram muito. Os efeitos colaterais são inevitáveis mas tecnologias cada vez mais ajudam a pesquisar as substâncias mais adequadas para ajudar aos pacientes a se recuperarem de episódios depressivos, fóbicos ou quadros ansiosos. O livro da CID - 10 propõe uma classificação de Transtornos Mentais e do Comportamento e conta com 283 páginas na Edição Brasileira de 1993 (Artes Médicas editora). É um trabalho árduo classificar e estudar as diversas formas do ser humano de enfrentar as dores que não podem ser verificadas por exames clínicos ou de imagem. O quanto dói? O que é uma dor suportável para cada um de nós...quanto nossa estrutura aguenta sem se partir? É um trabalho que envolve pesquisadores e clínicos em cerca de 110 institutos espalhados em 40 países. Médicose cientistas de várias partes do mundo. Para cada quadro uma profusão de alternativas para interferir no funcionamento químico do cérebro. Percebemos que o objetivo do remédio é "trazer de volta à média". Se temos um país de deprimidos e um mundo de ansiosos, o que passa a ser normal? Qual é a média de que tratamos aqui? Qual deve ser a medida do nosso século para a saúde e o bem estar mental? Talvez estejamos diante de uma ancestral necessidade de ordenar, classificar e detalhar seres humanos como Darwin com suas espécies. Quem sabe uma tentativa de buscar semelhanças e diferenças em determinados grupos. Definir estilos cognitivos, preferências de comportamento individual. E adaptar. Recuperar o sujeito. Torná-lo civilizado e útil. Adequado e funcional. Produtivo. Feliz. Equilibrado. Sim, estou exagerando. Isso para mostrar aos leitores o grau de impossibilidade que tratamos aqui. Cuidado para que não se torne vítima de uma massificação impositiva. Não admita ser tratado como louco só porque faz análise ou faz uso de eventual ou contínuo de uma medicação. Ninguém questiona se uma perna quebrada ou uma pneumonia precisa de tratamento. E, se este é o caso a pergunta-título ilustra bem uma forma de bullying. Ou, para usar um termo ainda mais em voga, psicofobia.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

A hora de tirar a camisa

Uma das expressões mais gastas do meio corporativo é: "Você tem que vestir a camisa!". E, durante nossa carreira saímos por aí vestindo as camisas que nos convidam a vestir. Nos envolvemos com as metas da empresa. Acreditamos com fé nos números projetados pela direção e seguimos, apaixonados, o caminho das vitórias. Afinal. é vestindo a camisa da empresa que ganhamos as melhores oportunidades, promoções, exploramos nossas aptidões e deixamos nossos talentos a disposição. Confundimos de verdade os objetivos deles com os nossos. Queremos ganhar mais dinheiro. Acreditamos piamente no crachá, no contracheque, no bônus, na meritocracia. E seguimos como um Édipo cego e errante. Camisa suada. Se alguma mudança estratégica muda a cor da camisa, mais que depressa mudamos nossa cor predileta. "Quem não muda, dança". Dançamos a dança das mudanças. Por vezes, a camisa fica apertada, rasga em alguns lugares...Não acreditamos mais nos ideais da empresa. Não concordamos com os meios para atingir os objetivos. Mas as contas vencem no final do mês. a escola das crianças é cara. a viagem que parcelamos em dez vezes ainda está debitando no cartão. E continuamos firmes. Até agora nada disse que meus caros leitores não estivessem fartos de saber. Mas voltemos ao título. Amo títulos. Estamos falando aqui do libertador movimento de tirar a camisa. De acreditar que a força do seu nome não é mais belo em um cartão de visitas bilíngue e a inscrição de "diretor" ou "superintendente" abaixo dele são o sentido de sua existência. Como sabem, tenho uma estranha obsessão por futebol. É o esporte brasileiro por excelência. Mesmo quem o despreza ou odeia não pode ignorá-lo. Não há como fugir de sua onipresença. Eis o que queria dizer: pessoas brigam seriamente em bares, ônibus e redes sociais pelos seus times. seus hinos. seus escudos. Confundem a glória dos jogadores com seu próprio suce$$o. Estranho? Não para os brasileiros. Nossa pátria de chuteiras. Mas peço que se lembrem da cerimônia que ocorre ao final de cada jogo. Não importa quanto humilhante ou surpreendente seja o placar. Jogadores suados, após da longa disputa de uma hora e meia. Trocam as camisas. Misturam seus suores. Falam bobagens aos repórteres afoitos à beira do campo. Choram de alegria ou decepção. Mas, sobretudo, lembram a todos nós que saber a hora de despir a camisa é tão importante quanto a de vesti-la. Não deixe que nenhuma camisa, por mais bonita que seja roube sua essência. Seu cheiro. Não vale a pena tirar a pele para se livrar da camisa. Para tudo há um tempo certo. Se for agora seu momento de tirar a camisa. Faça-o. Coragem. Você e seu coração podem mais.

Morreu velho e farto de dias

Ter uma filha adolescente representa um privilégio incrível. Vê-la se enmulherando, arrumada, de pijama no sofá. Meus olhos surpresos por vezes olham assustados como se fosse a primeira vez que a vejo em um misto de espanto e prazer. Adoro quando ela é obrigada a ler, pelo menos, um único e escasso livro por bimestre. Em que pese que na idade dela - aos quinze anos - lia um por semana e já contava 120 títulos devorados. Ademais é algo insano cobrar de nossos filhos uma continuidade de nossos atos. Eu sentava na primeira fila, usava óculos, não tinha vontade mas nem poderia parar na sala da diretora por problemas de comportamento. Minha mãe dava aula de inglês e em nove anos de educação no Instituto Metodista Bennett não tive a concessão de uma só advertência. Nenhuma. Não esquecia livros em casa nem deixava de cumprir os prazos de deveres e trabalhos. Não me orgulho nem um tantinho disso. Só eu sei quanto me custou. Até hoje me apavoram os prazos. Voltando a Bia. Ela abriu os primeiros livros sem figuras e sozinha nas mais de 50 páginas há pouco tempo. Leu "Onze minutos" do Paulo Coelho duas vezes. Depois, veio "Comer, rezar e amar" "A menina que roubava livros" (desconfio que este ela não terminou) e "O menino do pijama listrado". Mal consegui respirar quando no ano passado ela foi escolhida entre todos os alunos do Ensino Fundamental como a "Aluna de Ouro" da escola que estuda há dois anos. Finalmente, Beatriz Duarte florescia para as letras. Faculdade cursada pelo seu pai e pela avó Hélida. Amor da vida da sua mãe. Arte, dança, música ela sempre amou. A primeira medalha de ouro foi no Clube Militar da Tijuca com 10 aninhos - Ginastica de Solo pelo Clube Monte Sinai. Mas não era nada isso que queria dizer. O assunto era meu amado Jorge. Autor do clássico "Capitães da Areia" que vibrei ao ler nos meus treze anos ou de "Gabriela Cravo e Canela" que amei aos 35. Outro dia, por motivo de teste, eu e ela tivemos uma deliciosa insônia literária. "A morte e a morte de Quincas Berro d'Água". O livro contava com interessantes gravuras em preto e branco e uma história deliciosa e de fácil leitura mas profunda absorção. Assim, Quincas me perseguiu durante semanas. No metrô, tomando banho, antes de dormir. Sinto que todo homem bem casado tem seu lado Quincas. Um vago ressentimento da imagem da perfeição que Joaquim causa sobre esposa, filhos e netos. A vida vai chegando ao fim. Ou, pelo menos, para lá do meio. Hora de dar um berro. Independência ou morte? Um grito a favor da própria individualidade. Mesmo que seja considerado moralmente morto, Quincas me parece estar mais vivo que nunca em seus últimos dias na Terra. A expressão que dá título a este post é bíblica. Sempre achei meio patético morrer velho e farto de dias. Teoricamente, uma bênção. Na prática, um estorvo. Na controversa poesia da Sociedade Alternativa temos que todo homem deve ter o direito de viver como quiser e de morrer da maneira que Ele quiser. Jorge Amado cumpre a risca este manifesto com seu simpático personagem. Nasceu Joaquim mas morreu Quincas. Que assim seja!